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montesclaros.com - Ano 25 - terça-feira, 26 de novembro de 2024
 

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Mensagem: (Do livro ´Por Cima dos Telhados, Por Baixo dos Arvoredos´ - Parte 7)

LEMBRANÇAS DISTANTES

Em casa fui um menino muito malino. Minha mãe reclamava:
- Êta menino especula! Em tudo esse menino quer dar combate!
Mas fora de casa eu era tímido.
No que diz respeito a lembranças da infância, fui muito precoce. Quando meus tios Basílio e Joaquina mudaram-se de Várzea, de volta a Montes Claros, eu tinha um ano e meio, incompletos. Mas guardo lembrança de minha tia, ainda em Várzea. Eu estava na “sala de dentro”, como então se referia à copa, e a minha tia veio com um pano na mão, passou o pano no tampo da mesa de jantar e voltou à cozinha. Eu tinha pouco mais de um ano e meio, como já disse. Só voltei a vê-la oito anos mais tarde, aos 9 anos de idade, e a reconheci imediatamente. Achei-a apenas um pouco mais magra e com a pele do rosto menos lisa e com manchas escuras que antes não havia.
Em todas as minhas lembranças e saudades há quase sempre um fundo musical, uma trilha sonora, como hoje se diz. E algumas vezes um aroma especial. Eu posso dizer que cada tempo em minha vida tem sua ressonância musical e seu cheiro.
Guardo uma outra lembrança, essa de quando teria entre um ano e meio e dois anos de idade. Meus tios Basílio e Joaquina já não moravam mais em Várzea. Meu pai estava fazendo uma roça de milho e feijão na Fazenda do Espinho, também conhecida como Fazenda do Piranha. Minha mãe teve de ir para lá a fim de cozinhar para os trabalhadores durante o plantio. Calculo a minha idade na ocasião porque eu era o filho mais novo e minha mãe me levou com ela. Considerando que Joaquim, o filho seguinte, nasceu com uma diferença de dois anos e meio em relação a mim, e minha mãe não se encontrava em véspera de parto. Eu teria, na ocasião dessa viagem, em torno de dois anos de idade.
Viajávamos em uma carroça puxada a burros e coberta com um couro de boi, para proteção contra o sol e a chuva. Levávamos mantimentos e vasilhame de cozinha. E querosene e sal. Ia conosco a Regina, esposa do José Bruno, empregado de meu pai, para ajudar na cozinha. O teto de couro era irregular e baixo e nós íamos sentados no piso da carroça.
Gostei demais da viagem. Foi a primeira que fiz em minha vida. Na Fazenda ficamos durante 16 dias, conforme mais tarde vim a saber.
Só me lembro de duas ocasiões. Na ida, o carroceiro, de nome Marçal, cantava, a plena força, uma cantiga que começava assim:

Ôi, beira-mar,
adeus dona.
Ôi, beira-mar,
adeus dona.

A melodia me acompanhou a vida inteira. Uma grata lembrança. Muitos anos depois – 80 anos ou mais – esbarrei com a letra e a música, por inteiro. Pretendo incluí-la num pupurri folclórico que espero gravar um dia.
A outra lembrança dessa viagem e permanência na Fazenda é o cheiro de terras e raízes cortadas de novo. Esse cheiro eu reencontro, de vez em quando, e ele me reconduz a essa primeira viagem. Em uma carroça com toldo de couro de boi, aos 2 anos de idade, com minha mãe e Regina de Zé Bruno, mais mantimentos e cobertores. E o carroceiro Marçal, do lado de fora, a tocar os burros e a cantar saudosamente:
Ôi, beira-mar,
adeus dona...

SABIDÃO

Eu devia ter uns 2 anos, por ai assim. Minervina, a moça que me olhava (aqui no sentido de “tomar conta”, já que não existia entre nós a designação de “babá”) me ensinou a caçoar dos outros, falando assim:
- Pera ai, siô. Ocê tá parecendo capiau da unha torta, que fala pra mode que nem havera.
A Minervina me outorgava o papel de Sabidão...
Mais tarde, eu já teria uns três anos, ganhei um chapéu de couro e o colocava na cabeça e cantava:
Chapéu de couro
sem barbela,
morena é minha
e eu sou dela.

O LEILÃO

Sempre gostei de pagar pontualmente minhas dívidas. Esse costume vem de longe. A esse respeito guardo uma lembrança, já meio apagada, de um episódio acontecido quando ainda não havia igreja no povoado onde nasci.
A missa, quando o padre vinha de Pirapora, nas desobrigas, realizava-se, a princípio, na casa de meu pai, e depois passou a ser celebrada na casa da escola, onde também aconteciam as rezas, a coroação de Nossa Senhora e os leilões do mês de Maria.
Era uma noite de leilões. Grande era o ajuntamento de pessoas em frente à casa da escola, em torno da mesa com as oferendas, tudo bem alumiado pôr dois lampiões belgas.
O Manoel Chico, cabo reformado da polícia e carapina de ofício, era o leiloeiro.
Havia prendas em profusão. Cestas de biscoitos, pratos de bolos, pencas de frutas e muita coisa mais. Mas tudo já era anunciado pelo leiloeiro com lance acima de 500 réis, que era toda a minha fortuna.
Minervina, minha ama, quando por fim saiu uma prenda de menor valor, com lance de 200 réis, me animou:
- Grita 300 réis, você tem o dinheiro.
Na ocasião eu tinha 3 anos, e participava daquela festa escanchado na anca da Minervina.
O Mané Chico dava o seu recado.
- Quanto me dão por este lindo leilão que deram de presente à Nossa Senhora da Conceição. Afronta eu faço, que mais não acho, se mais achara eu mais tomara.
E prosseguia, andando pra lá e pra cá, com os olhos atentos sobre o pessoal em volta da mesa.
- Quanto me dão por este lindo maço de fósforos de vela, que deram de presente à Nossa Senhora da Conceição. Duzentos réis. Quem dá mais? Chegue-se a mim que receberei o seu lance. Quem dá mais?
Aí eu entrei no jogo:
- Trezentos réis - eu falei, mas o Mané Chico não ouviu.
- Grite mais alto - a Minervina me incentivou - E eu gritei:
- Trezentos réis.
O Mané Chico se virou para o meu lado e se abriu num largo sorriso.
- Olha, gente. É o Luiz de seu Tico! - E repetiu meu lance, com seu vozeirão de cantador de leilões:
- Trezentos réis! Trezentos réis me dão!
E concluiu em seguida, a rir:
- Dou-lhe uma, duas e três. Luiz de seu Tico arrematou.
E veio em minha direção, para entregar-me a prenda, com todo mundo olhando para mim e rindo, a achar graça na minha participação no leilão.
Eu é que não estava a achar graça. O desfecho rápido do leilão, após o meu lance insuflado pela Minervina, com toda aquela gente a olhar para mim, me apavorou. E eu pus a boca no mundo. A chorar alto, pra valer. E misturado com o choro eu bradava:
- O dinheiro não tá aqui. O dinheiro tá é lá em casa...
Foi um custo para eu entender que o Mané Chico estava me dizendo que a moça que acompanhava os leilões estava escrevendo meu nome no caderno dela e que eu poderia levar a prenda e pagar no outro dia.
Afogueado e soluçando, concordei em receber a prenda. Esporei a Minervina com os calcanhares e voltamos para nossa casa. A diaba da Minervina veio rindo por todo o caminho e ao chegar em casa ria tanto que só a muito custo pôde contar o acontecido.
No outro dia eu vendi o maço de fósforos a seu Cassiano Gordo, vendeiro vizinho de nossa casa, por 400 réis. E à noite voltei com a Minervina ao local dos leilões, cheio de brio, e paguei à moça da tesouraria os 300 réis devidos.

(continuará, nos próximos dias, até a publicação de todo o livro, que acaba de ser lançado em edição artesanal de apenas 10 volumes. As partes já publicadas podem ser lidas na seção Colunistas - Luiz de Paula)

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