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montesclaros.com - Ano 25 - segunda-feira, 25 de novembro de 2024
 

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Mensagem: (Do livro ´Por Cima dos Telhados, Por Baixo dos Arvoredos´ - Parte 12)

TI - TUÍ - Í

Meus irmãos e eu gostávamos de ouvir nossa mãe contar histórias do tempo da infância dela. Apinhávamos a seu redor, a pedir que nos falasse de seu tempo de criança.
Lembro-me da noite em que ela nos falou sobre as estações do ano. E esclareceu que tínhamos também nossa primavera. E acrescentou: “é um passarinho que avisa quando a primavera está para chegar”.
- Verdade, mãe?
- Verdade, filho. É uma avezinha de porte médio. Muito bonitinha. Ela tem o pescoço e o peito brancos. E as asas e a cauda escuras, marchetadas de branco.
- Ela canta, mãe?
- Canta, sim. É com seu canto que ela anuncia a vinda da primavera. É um canto bonito, melodioso, que alcança grandes distâncias. E ela o repete, seguidamente, desde quando começa a madrugada.
Nossas mentes de crianças ficaram empolgadas. Que coisa mais bonita! Um passarinho que avisa às pessoas que a primavera está chegando...
Nossa mãe carinhosamente prometeu:
- Quando chegar o mês de setembro eu acordarei vocês bem cedo, no escuro da madrugada, para vocês ouvirem o canto da primavera.
Não muito tempo depois, em uma madrugada de setembro, ela nos acordou, um a um, sacudindo-nos, sem fazer barulho, para não perturbar as outras pessoas da casa.
Após estarmos todos de pé, a seu lado, ela abriu uma janela que dava para o nascente e recomendou:
- Agora fiquem calados e escutem com atenção.
Nós estávamos curiosos e cochichávamos uns com os outros. A partir de sua recomendação, fizemos silêncio e nos pusemos à escuta. Daí a pouco começou a chegar aos nossos ouvidos o doce canto esperado. Era um canto de suave modulação, dividido em três tempos. No trecho intermediário as notas se prolongavam. Graficamente talvez se pudesse representá-lo assim: tí - tuííí - í.
Era um canto de alvíssaras.
Nós escutávamos embevecidos. Era um trinado límpido, cristalino, de indizível doçura, a repetir-se espaçadamente e a crescer e a ganhar distâncias na solidão daquela hora: tí - tuííí - í. Tí - tuííí – í. Tí - tuííí - í...
Olhando pela janela, vi que ao longe, acima do barrado azul da serra, o céu já assumira as cores da alvorada. E perguntei à nossa mãe como se chamava aquele passarinho.
- Primavera (*) - ela respondeu.
Mas para mim e meus irmãos, o seu nome, a partir daquele dia, passou a ser tí - tuí - í. E a tão grata cena, vivida naquela madrugada de setembro, tornou-se algo ternamente guardado para sempre em nossa lembrança.

(*) Ave passariforme do gênero XOLMIS, popularmente
conhecida como PRIMAVERA.

A ROSCA

Minha mãe havia me dado um tostão. Naquele tempo, o tostão, também chamado de cem réis, era a moeda de mais baixo valor. Mas com ela comprava-se uma caixa de fósforos, ou um papel e envelope, para cartas, e muita coisa mais.
Conheci a moeda de cobre, de 40 réis, e o vintém, de liga de níquel, de 20 réis, mas já fora de circulação, embora os adultos de então se referissem freqüentemente a um tempo em que uma e outro eram moedas correntes.
Voltando ao tostão, desde o momento em que o recebi, a moedinha não esfriou mais. Mantive-a sempre quente, apertada em minha mão.
Chegou a noite. Fui dormir pensando no que iria comprar no dia seguinte.
Ao despertar, pela manhã, de pronto não me lembrei do tostão. Dei-me conta, sim, de que havia algo novo naquele novo dia. Senti que vinha de dentro de mim uma alegria nova, latejando como se quisesse saltar do peito para fora. Mas não atinava com a razão disso tudo. Por que será que estou me sentindo assim tão feliz?
Foi nessa altura que me lembrei do tostão. E foi aquele susto! Cadê o tostão? Não se encontrava mais em minha mão. Revirei-me na cama, num átimo, e, graças sejam dadas, lá estava ele, o danadinho, a destacar-se sobre o lençol.
Apanhei-o depressa e voltei a apertá-lo na mão e a sonhar, olhando no telhado as teias de aranha e as falhas das telhas, por onde se avistava, aparecendo ao longe, o límpido azul do céu.
“Que vou comprar?” Era sobre o que me perguntava.
A escolha era farta. Poderia comprar três laranjas, ou quatro limas, ou cinco balas doces, ou dois biscoitos de fofão, ou uma rosca.
“Vou comprar uma rosca”.
Na rua de baixo havia a venda do seu Gaudêncio, delegado do lugar.
A esposa dele, Dona Biló, era quitandeira de mão cheia. Além do pão de sal, pesado, barrigudo, ela fazia uma rosca morena, temperada com canela e adoçada com rapadura, que para mim era a rainha das quitandas. Decidi-me.
“Vou comprar uma rosca”.
E fui. Deviam ser umas duas horas da tarde. Por aí assim. Nem muito antes nem muito depois. Comprei a rosca e no caminho, de regresso, vim roendo-a por fora, comendo a casca, que tinha um cheirinho bom de erva-doce. Poupando. Quem já foi menino pobre sabe o que é poupar. Comer devagar. Um pedacinho de cada vez. Para durar muito.
Ao me aproximar de casa a rosca já estava sem a casca. Raciocinei: “meus irmãos são muitos. Se eu entrar pela porta da frente vou ser forçado a dar um pedaço aqui, outro ali e lá se vai minha rosca”. Decidi: “vou pelos fundos.” Passei pelo quintal, saltei a janela do quarto de minha mãe e me deitei na cama dela, cobrindo-me com seu cobertor, dos pés à cabeça. E bem no escondido continuei a roer a minha rosca na maior felicidade.
Mas vocês sabem como são as coisas. Em lugar pequeno as notícias correm depressa. Assim é que o Vicente, meu irmão mais velho, ficou sabendo, não sei por que meios, que eu fora visto a roer uma rosca, vindo da venda de seu Gaudêncio. O Vicente nunca foi bobo. E tirou logo suas conclusões.
O certo é que daí a pouco comecei a ouvir seus gritos, dentro de casa, chamando por minha mãe.
Acompanhando o som da voz, percebi que ele fôra à cozinha, em seguida ao quintal, e agora vinha, a repetir o chamado, em direção ao quarto em que me encontrava.
Minha avó dizia que nós, os seus netos, tínhamos o capeta no couro. Devia ser o Romãozinho, que é o capeta dos meninos. Deve ter sido ele que me cutucou e me fez responder, debaixo do cobertor, o mais alto que pude, com a boca cheia de rosca, quando o Vicente passava pelo corredor sempre a gritar por minha mãe.
– Úuu... - Eu respondi.
Ele deve ter escutado. E a pergunta veio em altos brados:
– Onde é que a senhora está, mãe?
– Aquiii... – Respondi em falsete.
O Vicente insistiu:
– Onde, mãê?
– Úuu... Foi como respondi. Eu não quis arriscar-me a imitar novamente a voz da minha mãe. Ele já estava muito próximo e poderia descobrir o embuste. Por isso só fiz assim: – Úuu...!
Aí ele entrou no quarto, viu o vulto na cama, acreditou que era nossa mãe, e pôs-se a choramingar.
– Ó, mãe! A senhora deu um tostão ao Luiz, aquele cachorro amarelo, e ele comprou uma rosca. Todo mundo viu ele vindo da venda de Dona Biló, comendo a rosca. E a senhora não me deu nada. E arrematou, redobrando o chôro:
– Me dá um tostão, mãêêêê!
Não agüentei. Era engraçado demais. Eu ali debaixo daquele cobertor e o Vicente a chorar e a me chamar de mãe, e a pedir um tostão. Ele que era tão prosa e arrogante diante de mim...Não fui capaz de conter o riso.
Mas imediatamente tive de passar à ação. De um só golpe atirei o cobertor em cima dele e saltei para o outro lado, rindo a mais não poder, e pulei a janela, enquanto o Vicente perdia tempo desembaraçando-se do cobertor, dava a volta à cama e por sua vez saltava também a janela em minha perseguição, a xingar tudo que sabia.
Mas eu já estava longe. E os cacos de telha atirados por ele não me alcançaram.
Ganhei a rua, entrei num quintal vizinho e me escondi embaixo de um velho carro de boi.
Pacientemente deixei o tempo passar. Mais tarde voltei. Espiando de longe e avançando aos poucos, até chegar em frente à venda de meu pai e verificar que a barra estava limpa. Ninguém na venda. Somente meu pai. Em sua mesa, a escrever.
Entrei e fiquei perto do meu pai.
Daí a pouco o Vicente apareceu. Essa era a hora perigosa. Era o nosso primeiro encontro depois da presepada que lhe armara. Ele me viu e veio-lhe o ímpeto de me atacar. Mas eu me encostei mais em meu pai e ele se conteve e veio se aproximando devagar, até encostar-se em mim. Aí começou a me xingar só com o canto da boca, enquanto tentava pisar em meus pés e me beliscava no couro das costelas. Aí eu denunciei:
– Olha, pai. O Vicente está aqui querendo pisar em meus pés e me pinicando na costela...
Meu pai interrompeu a escrita, virou-se para nós, percebeu a atitude belicosa do Vicente e passou-lhe uns pitos, mandando que parássemos com aquilo e fossemos brincar lá fora.
O Vicente saiu, emburrado, mas eu não arredei pé da venda a não ser com meu pai, para jantar, e, mais tarde, para dormir.
No outro dia minha mãe deu ao Vicente um tostão. E a paz voltou a reinar em nosso mundo.


(continuará, nos próximos dias, até a publicação de todo o livro, que acaba de ser lançado em edição artesanal de apenas 10 volumes. As partes já publicadas podem ser lidas na seção Colunistas - Luiz de Paula)

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