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montesclaros.com - Ano 25 - sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
 

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Mensagem: O inesquecível Niquinho de açúcar

Ruth Tupinambá Graça

Não se pode deixar que a fumaça dos tempos venha cobrir, em nossa imaginação e nossa lembrança, acontecimentos, e principalmente, pessoas que durante quase um século de existência forma figuras importantes no cenário da nossa cidade.
Não será preciso fazer uma biografia do Niquinho de Açúcar, pois muita gente o conheceu e ainda se lembra dos seus feitos em prol de nossa comunidade.
Quero apenas, obedecendo os impulsos de um coração saudosista, contar como ele marcou minha infância.
Quando o conheci, já ele era casado e pai de sete filhos. Possuía uma alma de artista e, sobretudo, de poeta, aqueles que vêm ao mundo com olhos da poesia, do sonho, usando o coração mais do que a cabeça.
Niquinho de Açúcar, tal era o seu apelido, não tanto porque fosse muito claro e corado e possuísse os traços de um europeu fino, mas talvez, justamente, por ter mesmo um coração açucarado.
Natural de Conceição do Serro, hoje Conceição do Mato Dentro, Antônio Ferreira de Oliveira veio para Montes Claros em 1912.
Por que teria escolhido Montes Claros para dedicar-lhe os melhores anos de sua vida?
Por que se afastara dos grandes centros civilizados, vindo lutar com os montes-clarenses pelo progresso deste nosso sertão? Cilada do destino quis que Montes Claros ganhasse mais este filho, que aqui viveu, lutou e morreu como um montes-clarense de coração.
Tantas dificuldades enfrentou para chegar até aqui, neste sertão longínquo, sem estradas, longe da civilização!
O lombo do burro, numa viagem exaustiva, era o único transporte. Mas, para sua alma sensível, tudo era festa e motivo para dar expansão ao seu coração de poeta. E quando, no trote duro e compassado do animal, pelas estradas que serpenteavam as imensas matas, ouvindo apenas o canto triste do zabelé e das pombas verdadeiras; e quando, ao nascer do sol, as saracuras o saudavam com seu canto de duas notas, seu Niquinho não sentia o desconforto nem o cansaço, mas apenas seus ouvidos se deleitavam com a música da natureza.
Havia, também, o perfume gostoso das flores silvestres, naquelas tardes quentes, nas entranhas das florestas virgens, quando uma brisa soprava mansamente arrepiando-lhe a pele, trazendo-lhe o perfume e a lembrança de uma mulher bonita...
E quando, à noitinha, já arranchado à beira de um riacho ouvindo o cantar das águas cristalinas, ondulantes em pequenas cachoeiras e o luar derramava seu clarão prateando em todo aquele imenso sertão, os olhos do poeta brilhavam, seu coração pulsava mais forte, sentindo toda aquela beleza!
De olhos semi-cerrados, sua alma povoava de sonhos e os belos versos afloravam em sua imaginação. E como se sentia feliz!
Ainda moço, em plena juventude quando se tem o coração cheio e esperanças, ele sonhava com esta Montes Claros.
Esperava encontrar aqui o futuro. Realizar-se profissionalmente, amar, constituir família, ter filhos e netos. Tudo isto o impelia para Montes Claros, tendo a intuição de que alguém aqui o esperava – uma sertaneja. Sua chegada foi um grande acontecimento na bucólica cidade.
A princípio morou em casa dos amigos (família Sarmento). Formado pela Escola de Farmácia de Ouro Preto, exerceu a profissão em sua terra natal até 1912, quando se transferiu para Montes Claros.
Inteligente, culto grande orador, era constantemente solicitado (o que fazia com prazer). O jovem poeta era o assunto, como porta-voz da coletividade.
Aqui chegando, estabelecido e boa pinta, estava com a corda todos e as jovens casadoiras se alvoroçavam, havendo muita disputa. Seus versos encantavam-nas e eram uma forte arma para conquistas. O jovem poeta era o assunto das fofoqueiras nos serões das austeras famílias.
Em breve, o cupido acertou-lhe em cheio o coração. Casou-se com Cândida, filha do seu Francisco Peres, uma das principais famílias.
Nos intervalos, entre as pílulas, poções e receitas, seu Niquinho encontrava sempre uma folguinha para poetar.
Agradavam-lhe mais as rimas do que as drogas e, muitas vezes, enquanto a farmácia regurgitada de fregueses aflitos, necessitando de elixires, purgantes, cápsulas de quinino para debelar a febre, palustre da região e, muitas vezes, para apressar partos, ele tranquilamente fechava-se no laboratório (e, longe do mundo, da maldade, doenças e tristezas) se deixava levar pelos impulsos de sua alma passando para o papel os mais belos sonetos.
Sua farmácia chamava-se Farmácia Americana, justamente onde é hoje a Drogaminas, no cruzamento das ruas Camilo Prates com Presidente Vargas, onde ele sempre estava com um sorriso franco, pronto a servir a quem o procurasse. Era extremamente social.
Grande jornalista dirigiu o Montes Claros a partir de 1916, semanário onde publicava não só suas produções poéticas como artigos de fundo, editoriais e comentário.
Em qualquer movimento da comunidade, ele estava pronto e à frente, liderando.
Exerceu o cargo de vereador da Câmara Municipal, da qual foi várias vezes secretário. A filantropia era a característica marcante da sua personalidade. Sua farmácia não visava lucros, as cifras não lhe interessavam muito e o fiado enchia seus livros de contabilidade. Os pobres iam buscar o remédio em sua farmácia e nuca comprá-lo. Isto nunca o molestou, razão por que não acumulou fortuna.
A Fortuna maior e que o tempo não consome, morava dentro dele – era o seu interior.
Basta dizer que, em 1918, quando a espanhola grassava aqui e na sua região norte-mineira, a ele nos deu uma lição de amor ao próximo, socorrendo a população vítima da epidemia, pondo-se à disposição dos pobres, bem como sua farmácia assistindo os enfermos incansavelmente, sem remuneração. Nessa ocasião, foi homenageado com uma medalha de ouro, pela população.
Muitas vezes presenciei seus gestos, sua maneira de ser, tanto na farmácia como em casa de seu Chico Peres, seu sogro e vizinho, e onde eu brincava sempre com as colegas Zélia e Zelândia, local onde se reuniam seus netos.
Encontrava-o lá e me admirava de sua educação e atenção comigo, seu bom humor, perguntando sempre por meus pais e meus estudos. Trazia balas escondidas na manga do paletó, e fingindo mágicas, as tirava do nosso nariz, nossos ouvidos, nos deixando eufóricas e encabuladas. Criança gosta de ser notada, ser amada. Ele amava criança.
Lembro-me, era tão carinhoso com os filhos, ficando de prosa, horas e horas com eles e comigo, como se fôssemos da mesma idade, numa camaradagem pouco comum naquela época, em que criança deveria ser tratada à distância, para não perder o respeito dos mais velhos.
Adulava muito a Yvonne. Devia ser a filha predileta. Ela era dengosa, bonita, com sua pele muito clara, longos cabelos pretos e lisos. Vivia encarapita em seu colo. Era uma menina muito chic, com seus vestidos, de cassa, vaporosos, enfeitados de fitas e rendas. Na escola, fazia-nos inveja seu uniforme bem cuidado, sapatos de verniz pretos, sempre brilhando, e as meias rendadas. Que inveja! Ninguém tinha iguais.
Por diversas vezes vi seu Niquinho beijando-lhe as faces rosadas, num embevecimento total, alisando-lhe os cabelos enquanto ela, muito falante (como até hoje), recitava os versos que ele lhe ensinava.
Os dois, pai e filha, deveriam ter já naquela época, muita afinidade. E até hoje muito me encanta a maneira como a Yvonne (Silveira) cultiva a memória do pai, a saudade e as recordações que o tempo jamais conseguirá apagar do seu coração.

(N. da Redação: Ruth Tupinambá Graça, de 94 anos, é atualmente a mais importante memorialista de M. Claros. Nasceu aqui, viveu aqui, e conta as histórias da cidade com uma leveza que a distingue de todos, ao mesmo tempo em que é reconhecida pelo rigor e pela qualidade da sua memória. Mantém-se extraordinariamente ativa, viajando por toda parte, cuidando de filhos, netos e bisnetos, sem descuidar dos escritos que invariavelmente contemplam a sua cidade de criança, um burgo de não mais que 3 mil habitantes, no início do século passado. É merecidamente reverenciada por muitos como a Cora Coralina de Montes Claros, pelo alto, limpo e espontâneo lirismo de suas narrativas).

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